Descoberta feita numa gruta em Moçambique relevou que a nossa espécie terá começado a ingerir cereais, e a aproveitar o seu amido energético, há bastante mais tempo do que se supunha. Alguns arqueólogos não estão, no entanto, totalmente convencidos.
O advento da agricultura era então algo ainda longínquo e os humanos da nossa espécie, Homo sapiens sapiens, baseavam a sua alimentação na caça e na recolha dos frutos, nozes e raízes que encontravam. Os cereais, pelo menos tanto quanto as descobertas arqueológicas permitiam dizer, iriam ainda manter-se arredados milhares de anos da despensa dos seres humanos. Afinal, pode não ser bem assim: vestígios de sorgo encontrados numa gruta em Moçambique revelaram que há cem mil anos já comíamos cereais.
Em 2007, o arqueólogo Julio Mercader, da Universidade de Calgary (Canadá), esteve a escavar na gruta de Ngalue, no Noroeste do país, com colegas moçambicanos da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo. Ao fim de um corredor com 20 metros de comprimento, a gruta desemboca numa câmara escura, com 50 metros quadrados e um tecto a oito metros de altura, que foi habitada de forma intermitente, ao longo de mais de 60 mil anos, por caçadores-recolectores.
Bem no interior da gruta, encontraram-se diversos tipos de ferramentas de pedra, ossos de animais e restos de plantas, depositados em camadas de sedimentos com 42 mil a 105 mil anos. Ora nas camadas com mais de cem mil anos o arqueólogo deparou-se com ferramentas que apresentavam vestígios de amido, oriundo principalmente de sorgo selvagem (quase 90 por cento dos restos de amido provinham deste cereal), segundo revela Mercader num artigo científico que publicou na revista Science. Outros vestígios de amido detectados provinham da palmeira-africana (que dá vinho), da batata-africana ou da bananeira-da-abissínia.
Esta é apresentada como a prova directa mais antiga do consumo
dos cereais pelos humanos modernos.
Início da agricultura
Qual a importância da descoberta relativa ao sorgo? É apresentada como a prova directa mais antiga do consumo dos cereais pelos humanos modernos, como se chama também à nossa espécie, surgida há cerca de 200 mil anos.
Até há pouco tempo, pensava-se que os humanos só começaram a comer grandes quantidades de cereais com a domesticação das plantas há dez mil anos - ou seja, com o aparecimento da agricultura. Esta ideia foi abalada em 2004, quando uma equipa de cientistas disse ter descoberto vestígios de trigo e cevada numa ferramenta de pedra com 23 mil anos, encontrada em Israel. O artigo de Mercader na Science veio portanto revelar que começámos a comer cereais cerca de 80 mil anos mais cedo do que se supunha até agora.
Pensava-se que os cereais teriam entrado tardiamente na alimentação humana por uma simples razão: como não é fácil torná-los saborosos, têm de ser transformados em farinha e cozidos em pão ou papas. Além do dispêndio de energia, isso é tecnologicamente difícil, pelo que se pensou que só bastante tarde os humanos começaram a tirar proveito do seu conteúdo em amido, como uma reserva energética. Hoje, o sorgo é o principal cereal consumido na África subsariana, onde a sua farinha até é fermentada em bebidas alcoólicas.
"Isto alarga a cronologia do uso de cereais pela nossa espécie e prova a existência de uma dieta sofisticada mais cedo do que pensávamos. Aconteceu numa altura em que, convencionalmente, se considerava a recolha de grãos selvagens como uma actividade irrelevante e não tão importante como a da apanha de raízes, frutas e nozes", sublinhou Mercader, citado numa nota da sua universidade.
Passo na evolução humana
"Tem-se colocado a hipótese de que o amido representa um passo crítico na evolução humana, ao melhorar a qualidade da dieta humana na savana africana e nas terras húmidas, onde evoluíram os humanos modernos. Isto pode ser considerado um dos exemplos mais precoces desta transformação na dieta", acrescenta o arqueólogo. "A inclusão de cereais na nossa dieta é um importante passo na evolução humana por causa da sua complexidade técnica e da manipulação culinária que exige para transformar os grãos em bens de consumo."
Nem toda a gente concorda com a interpretação de Mercader. Por exemplo, o arqueólogo Curtis Marean, da Universidade Estadual do Arizona, considera que os cereais podem ter sido utilizados em muitas coisas, como servir de cama, segundo declarações suas numa notícia tambémda Science: "O custo do processamento dos cereais selvagens é muito elevado. Além disso, a maioria dos ambientes africanos tem uma diversidade de alimentos mais produtivos para os caçadores-recolectores."
Na mesma linha crítica, Huw Barton, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, diz que os resíduos de sorgo estão em ferramentas que não eram utilizadas no processamento de cereais. "Isto não tem qualquer sentido para mim", comenta.
A tudo isto, Mercader responde: "Por que é que alguém iria levar sorgo para uma gruta, a não ser que estivesse a fazer alguma coisa com ele? A explicação mais simples é a de que era um bem alimentar."
Seja qual for a interpretação mais próxima da realidade, o certo é que a descoberta na gruta de Ngalue lançou o debate sobre o que guardavam os primeiros Homo sapiens sapiens nas suas despensas.
In: Público
Por Teresa Firmino
04.01.2010 - 10:46
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